Fantasmas voltam a assombrar Cannes Lions

A cada edição do Cannes Lions, cresce a sensação de que o festival de criatividade mais prestigiado do mundo desprestigia nossa classe ao julgar a categoria de Brand Experience.

por Julio Feijó

A cada edição do Cannes Lions, cresce a sensação de que o festival de criatividade mais prestigiado do mundo desprestigia nossa classe ao julgar a categoria de Brand Experience. Em 2025, isso se repetiu com clareza.

Três casos emblemáticos ajudam a ilustrar: dois Leões de Ouro brasileiros e o Grand Prix da categoria. O primeiro foi para Plastic Blood, da DM9 para a Oka Biotech, que transformou partículas de microplástico em “sangue artificial” para alertar sobre a poluição dos oceanos. O segundo, AdsCOVERrents, da Africa para a Brahma, adaptou coberturas de pontos de ônibus em microcasas para pessoas em situação de rua, associando a marca a uma ação social de impacto urbano. Já o Grand Prix foi concedido à campanha Captions with Intention, que melhorou legendas automáticas para torná-las mais acessíveis e claras a pessoas com deficiência auditiva.

Não se discute aqui o mérito social dessas campanhas. São projetos com forte valor social, ecológico e político — e isso explica em parte o destaque que receberam — nem tampouco a competência dos profissionais envolvidos. Pelo contrário: são iniciativas relevantes, conduzidas por talentos notáveis. Um exemplo é Thomas Tagliaferro, vice-presidente da DM9, premiada pelo projeto Plastic Blood. Trata-se de um criativo com profundo entendimento de experiências de marca — conheço seu trabalho desde os tempos da criação da Garra Humana, para o canal Nickelodeon, repetido até hoje, além das grandes ideias para Gilette ou café Pilão, que consagraram a extinta NewStyle, isso tudo lá na década de 10.
O problema, portanto, não está na qualidade das ideias ou dos profissionais, mas no enquadramento: essas ações representam de fato experiências de marca imersivas e vividas, ou seriam melhor avaliadas em outras categorias?

A sensação é de que, nessa categoria, o júri segue premiando a intenção — e não a experiência.

Essa distorção se agrava quando se observa a ausência desses cases brasileiros em veículos especializados como Promoview, Mundo do Marketing, Marcas Pelo Mundo ou mesmo em nossas atualizações diárias. Em um cenário onde qualquer ativação relevante é rapidamente comentada nesses canais, o silêncio em torno desses trabalhos sugere que foram produzidos mais para jurados internacionais do que para impactar o mercado real. Soam como cases “fantasmas”.

Isso reforça a pergunta central: estamos premiando experiências reais de marca ou apenas ideias criativas travestidas de brand experience?

Esse debate não é novo. Há anos, profissionais de live marketing e eventos questionam os critérios do júri de Cannes, que frequentemente trata “experiência de marca” como qualquer ação fora da mídia paga — o que representa uma perigosa simplificação.

A contradição é ainda maior diante do crescimento da própria categoria: em 2025, Brand Experience & Activation foi a mais concorrida do festival, superando áreas tradicionais como Film, Outdoor e Direct, com recorde de inscrições e crescente interesse do mercado. Como justificar, então, que a curadoria e o julgamento sigam tão desalinhados da prática?

Por definição, Brand Experience é criar vivências memoráveis, presenciais ou híbridas, com o consumidor no centro da narrativa. É gerar conexão emocional com propósito, coerência e impacto real — não apenas transmitir mensagens por vias não convencionais.

A confusão conceitual — muitas vezes alimentada pela própria indústria — acaba por diluir o que deveria ser uma celebração da criatividade experiencial. A categoria vem sendo ocupada por cases que caberiam melhor em Direct, Media ou PR, e isso é injusto com quem está na linha de frente criando estandes interativos, ativações presenciais, festivais proprietários, experiências imersivas.

Com isso, a essência do Brand Experience — uma marca que se vive e se lembra — fica invisibilizada.

O Cannes Lions precisa urgentemente rever seus critérios. Criar subcategorias claras. Distinguir inovação de experiência vivida. Valorizar o trabalho que realmente constrói pontes entre marcas e pessoas.

Celebrar projetos que distorcem o conceito, por mais criativos que sejam, não é apenas uma falha de julgamento: é um sinal de desconexão com a prática do mercado — e isso compromete a legitimidade da categoria mais dinâmica da indústria criativa.

Brand Experience não é o que parece novo. É o que se vive, se sente e se compartilha. Enquanto Cannes não compreender isso, os cases mais emocionantes continuarão fora do palco — e os troféus, nas mãos de quem nunca montou uma experiência de verdade.

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